Recado para pais e mães: diabetes exige independência!
Tão importante quanto auxiliar os filhos a cuidar bem da saúde é ensiná-los a tratar o diabetes por conta própria, explica Ronaldo Wieselberg.
Recentemente li um texto do Dr. Walter Minicucci, no qual ele contava a história de um de seus pacientes. Naquele texto, ele contava da resistência do então menino às aplicações de insulina e aos testes de glicemia. Com a dedicação da mãe, o menino cresceu, agora tem uma hemoglobina glicada de 7,1%, adequado provavelmente à sua faixa etária, mas continua dependendo dos pais para as aplicações de insulina. O Dr. Minicucci, então, conclui que é necessária a dedicação de uma figura familiar, assim como a mãe de seu paciente o fez.
Permito-me discordar do Dr. Minicucci.
Algo que percebo entre os profissionais de saúde que tratam pessoas com diabetes tipo 1 é a dificuldade de lidar com a família. Isso faz bastante sentido, já que essa “realidade” de pessoas com diabetes tipo 1 chegando à idade adulta de maneira saudável, sem complicações, sem depender de ninguém, é algo relativamente novo. A prova disso é que “ainda” – percebam as aspas – admiramos pessoas que chegam aos cinquenta, sessenta, setenta anos com diabetes… e sem nenhuma complicação!
Oras, se esse fosse o padrão, não precisaríamos admirar ninguém, concordam? A inspiração vem daquilo que é diferente, daquilo que almejamos. Quando todos chegamos ao mesmo objetivo, ele deixa de ser objeto de desejo. E é isso que esperamos que aconteça com o diabetes! Todos, curados ou muito bem tratados, com oitenta, noventa, cem anos de diabetes, e sem nenhuma complicação!
Para que todas as pessoas que convivem com o diabetes cheguem a idades avançadas bem de saúde, uma coisa é essencial: que elas próprias saibam se cuidar. E não tem jeito: a única maneira de aprender é começar desde cedo, empenhando-se no controle da saúde.
QUEM É RESPONSÁVEL POR CUIDAR DO DIABETES?
O que acontecia antigamente era a pessoa com diabetes, devido às limitações do tratamento da época, frequentemente desenvolver alguma complicação. Então, ela passava a depender de um cuidador – frequentemente, a mãe. Esse cuidador, então, perfazia todos os cuidados, tomava todas as decisões… em resumo, a vida da pessoa dependia desse cuidador.Até agora, o que muitos dos profissionais de saúde fazem é exatamente isso. Inconscientemente, passam para os pais da criança recém-diagnosticada que ela deve fazer tudo pelo cuidado do filho… para sempre.
Laços de paternidade são, possivelmente, a coisa mais forte criada pela natureza para garantir que qualquer espécie sobreviva. Mães que viram carros para salvar filhos; pais que lutam com animais selvagens para resgatar uma criança… são vários os relatos. Nossos cérebros entendem que os filhos são a coisa mais valiosa da vida desde o começo. Até que eles atinjam a idade adulta e possam caminhar por si só.
E finalmente, chegamos ao diabetes. Uma doença crônica, que em breve afetará uma em cada onze pessoas no mundo. Não tem cura e, se não for tratada corretamente, pode levar à cegueira, amputações… um mundo de tragédias que ninguém deseja. Vamos, agora, somar todos os fatores.
O QUE ACONTECE COM OS FILHOS QUANDO TÊM DE SE VIRAR POR CONTA PRÓPRIA?
Pais que naturalmente fariam tudo por seus filhos. Profissionais que inconscientemente transmitem a mensagem de que o cuidado da pessoa com diabetes depende do cuidador. Uma constelação de horrores caso o cuidado seja deixado de lado. Uma criança que não sabe como se cuidar. Resultado…? Você já pode imaginar.Muitos pais trocam tudo pelo bem estar dos filhos. E não é no sentido figurado da palavra, muito menos só no Brasil. Almejando o “controle ótimo” dos filhos, muitos pais nos Estados Unidos deixam os empregos sob a ameaça de que lhes tirem os filhos por maus tratos. No Brasil, muitas mães trocam suas carreiras e empregos por alguma alternativa que permita que elas apliquem insulina e façam todos os testes de glicemia – e muitas vezes, não apenas na primeira infância dos rebentos.
Quando os filhos vão crescendo e tendo mais independência, não há problemas. O problema é que alguns se acomodam, outros se incomodam com a situação. Alguns filhos deixam os cuidados com a saúde inteiramente nas mãos dos pais. Outros querem independência, porém encontram dificuldades na hora de corrigir a glicemia, pois não tinham experiência prévia de como fazer isso.
Histórias desse tipo são muito comuns. Vamos pensar em alguns casos…
- Imagine uma criança que nunca precisou se preocupar com correção para hipoglicemia, já que a mãe sempre tinha biscoitos na bolsa. Nunca precisou se importar com aplicações de insulina, pois a mãe preparava todas as doses e as aplicava. Nunca se preocupou em carregar o monitor de glicemia, já que estava sempre com a mãe. Como essa criança, ao crescer, se conscientizaria de que agora ela, como jovem adulto, precisa carregar sempre consigo monitor de glicemia, correção para hipoglicemias e insulina? Deixar que ela aprenda com seus erros, apenas na hora em que a mãe não estiver mais ali, fazendo ainda mais traumático esse rompimento?
- Um jovem adolescente, cuja mãe sempre fez tudo, agora quer sair com uma menina, com quem está se envolvendo romanticamente. Faz sentido ele levar a mãe junto para o encontro? Imagino a situação…
- O mesmo jovem do exemplo anterior sente-se excluído do grupo de colegas da escola, uma vez que em todos os intervalos e refeições precisa sair de suas atividades para que a mãe aplique a insulina. Para um jovem em formação, a validação do grupo é algo absurdamente necessário. O controle do diabetes, desse jeito, passa a ser um estigma, e muitos acabam descuidando da saúde em busca de ‘aceitação’.
FAMÍLIAS ESCLARECIDAS = FILHOS SAUDÁVEIS
Particularmente, acredito que nós, como profissionais de saúde, deixamos muito a desejar no suporte à família. Uma família esclarecida entende que não estará ali para sempre – afinal, imortalidade me parece muito chato! – e que a criança, hora ou outra, alçará voo com suas próprias asas. Faculdade em outra cidade, dormir na casa da namorada, viajar para congressos… em algum momento, as vidas serão… delas!“Será que o controle ótimo do diabetes vale essa “bolha” na qual muitas crianças são colocadas, com a melhor das intenções?”
As crianças têm um potencial de aprendizado imenso. Tanto que aprendem várias línguas rapidamente, podem se tornar prodígios quando estimuladas da maneira correta – que o diga o professor Laszlo Polgár, que transformou as três filhas em formidáveis jogadoras de xadrez para provar sua teoria! – e esta é uma característica normalmente menosprezada. Da mesma forma que muitos profissionais de saúde não comentam sobre as doenças que seus pacientes têm, com a ideia de que “não entenderiam”, muitos pais tomam para si, indefinidamente, as responsabilidades do diabetes.
Será que o controle ótimo do diabetes vale essa “bolha” na qual muitas crianças são colocadas, com a melhor das intenções? O que seria esse “controle ótimo”, afinal? Uma hemoglobina glicada dentro das metas recomendadas pelas sociedades científicas? A ausência de complicações? Será que uma criança com resultados “péssimos”, apesar de todos os esforços, não vai acabar mais desestimulada a se interessar pelo tratamento?
ACAMPAMENTOS DE DIABETES: UMA IDÉIA POSITIVA PARA LIDAR COM OS DESAFIOS DO DIA A DIA
Ter um filho é um desafio à parte, e não existe uma resposta certa, absoluta, para essa situação. Nunca sabemos como vamos reagir às situações até que aconteçam, mas os acampamentos de diabetes nos oferecem valiosas informações sobre esse tema em especial… Muitas das crianças chegam lá desconhecendo o diabetes. E ali, existem pessoas capacitadas para cuidar delas: médicos, enfermeiros, e, sobretudo, monitores.Nos acampamentos, jovens que já passaram pelas mesmas dificuldades das crianças cuidam delas e transmitem informação e confiança de um jeito amigável e descontraído, na linguagem certa – são os monitores.
Os monitores cumprem um papel curioso. Às vezes, agem como os “pais” das crianças, quando os mandam para o banho, quando os acordam, quando os mandam arrumar o quarto. Em outros momentos, são amigos, quando estão em alguma atividade, jogando futebol ou agitando uma festa. Mas sempre, sempre, são exemplos. São exemplos de compreensão, exemplos de confiança e, mesmo que não saibam tudo sobre diabetes – aliás, quem sabe?! – estimulam a curiosidade das crianças.
Se por um lado os médicos, enfermeiros, educadores físicos, nutricionistas e psicólogos estão ali para adaptar o tratamento, garantir cuidados corretos, prover um gasto energético e uma ingesta alimentar saudáveis e compreender a criança com diabetes como um todo, criando um universo no qual haja segurança, por outro o monitor está ali estimulando a exploração desse universo.
Na hora de fazer o teste de glicemia, o monitor estimula a criança a fazê-lo sozinha, corrigindo se necessário – mas não realizando o teste por ela. Diante dos resultados, ele não os classifica como “ótimos” ou “péssimos”, mas como números que devem orientar uma decisão. Se estiver em hiperglicemia, pensam juntos no que pode ter ocasionado aquele resultado, para que a criança entenda a relação de causa e consequência do evento. Com a ajuda da equipe de nutrição, pensam no que vão comer e calculam, junto à equipe médica, a quantidade de insulina para aplicar. Com a ajuda da equipe de enfermagem, aprendem como preparar a dose na seringa ou caneta e como aplicar a insulina da maneira correta, virtualmente indolor. E o tempo todo, o monitor está junto, transmitindo a confiança de que fará tudo com a criança, mas não fará pela criança.
Não é à toa que muitas crianças sentem muitas saudades dos monitores. Algumas delas são tão tocadas pelos exemplos que decidem, inclusive, se tornar também monitores.
PAIS E MÉDICOS UNIDOS PELA SAÚDE DAS CRIANÇAS
Se, por um lado, os pais precisam de fato tomar a responsabilidade dos cuidados quando a criança é muito pequena, de outro devem fornecer o ambiente para que a criança se desenvolva. Esse ambiente não é criado artificialmente, em acampamentos. Ele nasce do relacionamento sadio com os profissionais de saúde, que orientam os pais para que estes saibam como agir diante do crescimento da criança. O profissional deve orientar a família, e não apenas conduzi-la.“(Os pais) devem fornecer o ambiente para que a criança se desenvolva”
Meu saudoso professor de Anatomia, Dr. João Carillo, dizia que “o médico era o conselheiro da família”. Está na hora de repensarmos essa frase e entender o núcleo familiar inteiro, não apenas focando no valor da glicada e se há um “cuidador dedicado”. Como diria outro dos meus professores, desta vez, de Clínica Médica, Dr. Valdir Golin, “bons profissionais já fazem isso há tempos”.
Remissão do diabetes tipo 2 é uma realidade cada vez mais frequente, afirmam entidades médicas
Um dos termos mais procurados junto com “diabetes” é “cura“. Afina…